Ava-Canoeiro
Nada aniquilou ou domesticou a vitalidade resiliente dos sobreviventes ãwa, que seguiram adiante contando essencialmente com a sabedoria herdada de seus ancestrais, o vínculo amoroso entre eles e uma narrativa profética que prevê o retorno ao seu território de origem. As crianças que sobreviveram à captura e as que foram nascendo depois foram protegidas e cuidadas pelo pajé Tutawa com afeto e dedicação exemplares, a quem ensinou a língua, práticas rituais e batizou com os nomes-alma dos antepassados, conforme a tradição ãwa, mantendo uma das mais importantes formas de continuidade do legado tupi-guarani (Viveiros de Castro 1986). Apesar do contexto de forte discriminação, os descendentes do grupo contatado auto identificam-se como Ãwa ou são reconhecidos pelo grupo e pela comunidade local como Avá-Canoeiro.
Língua
A
língua avá-canoeiro pertence à família tupi-guarani, do grande tronco
linguístico tupi. Com a separação dos dois grupos conhecidos de Avá-canoeiro
desde o início do século 19, foram desenvolvidas significativas diferenças
dialetais entre o grupo do médio Araguaia e o do alto Rio Tocantins. Todos os
Avá-Canoeiro do Araguaia falam ou pelo menos compreendem a língua avá-canoeiro,
como foi constatado pela linguista Mônica Veloso Borges, professora da
Universidade Federal de Goiás e estudiosa da língua avá, durante oficina com o
grupo em 2013
A
língua persiste notavelmente, apesar de um contexto social extremamente
adverso, pois os Avá são um grupo minoritário que vive em uma posição de
marginalização social nas aldeias javaé e karajá. Pode-se dizer os Avá-Canoeiro
do Araguaia são um grupo multilíngue, pois praticamente todos também falam o
Português e falam ou compreendem os dialetos karajá e javaé, da língua karajá,
do tronco linguístico macro-Jê.
A
Relação com os recursos naturais e a cultura material
Os
Avá-Canoeiro, mais por contingência histórica do que por opção cultural,
abandonaram as canoas e a agricultura e privilegiaram as atividades de caça e
coleta, que tiveram que ser adaptadas ao regime de inundações do médio
Araguaia. Eles restringiram a sua ocupação territorial às matas interioranas e
capões de mato mais inóspitos dos interflúvios, distantes das margens dos
grandes cursos d’água, onde podiam se refugiar tanto dos povos indígenas
ribeirinhos que dominavam a região historicamente como dos brancos que passaram
a frequentar e ocupar o vale do Javaés.
Todavia,
os Avá-Canoeiro atuais também demonstram continuidade com os antepassados por
meio da sua relação com os recursos naturais. Em seu estudo comparativo sobre
os povos tupi, o antropólogo Roque de Barros Laraia (Laraia , 1986) chega à
conclusão que duas características principais os distinguem de outros povos
indígenas: “a sua filiação linguística e a sua fidelidade a um tipo de habitat
comum, a floresta”, categoria que pode incluir diversos tipos de cobertura
vegetal e que tem uma importância tanto econômica quanto simbólica. A
agricultura e a caça, nesta ordem, seriam as fontes de alimento mais
importantes.
O
padrão de habitação e o uso dos recursos naturais foram condicionados, em
grande parte, pelas condições críticas de sobrevivência que o grupo enfrentou
historicamente, o que levou a grandes alterações, incluindo a perda de antigos
hábitos e a inclusão de novos.
Mesmo
assim, eles continuaram sendo “povos da floresta”.
Assim
como a caça, a coleta de recursos vegetais e animais foi uma atividade de
grande importância para os Avá-Canoeiro dos dois grupos antes e depois do
contato. Do mesmo modo que a captura de animais, a coleta de frutas e outros
recursos ainda é praticada, na medida do possível, com uma periodicidade
determinada pelos respectivos ciclos sazonais, embora esteja bastante
prejudicada atualmente em função das proibições impostas pelos moradores brancos
O
algodão era usado para a amarração de flechas e, ocasionalmente, para a
tecelagem. 'Tutawa' se lembrava de uma rede de algodão feita no passado,
embora as redes de palha de buriti fossem mais comuns. O urucum era usado para
pinturas corporais pelos homens e mulheres e também para pintar os ossos do
morto em uma cerimônia funerária no enterro secundário.
As
novas gerações aprenderam a pescar peixes e tartarugas nas aldeias dos
pescadores javaé e karajá. No Araguaia, Tutawa estimulou seus netos a
retomarem a pintura dos corpos ao modo tradicional, com a tinta preta de
jenipapo, depois do reconhecimento da Terra Indígena Taego Ãwa pela FUNAI, em
2012, quando a nova geração iniciou uma peregrinação aos centros de decisão em
busca da regularização fundiária de sua terra tradicional. O filme Taego Ãwa
(2016) exibe uma emocionante cena de pintura corporal dos Ãwa na aldeia Boto
Velho, dos Javaé.
Xamanismo
e Cosmologia
Resiliência
talvez seja o conceito mais apropriado para compreender a sua organização social,
enquanto uma estrutura eminentemente histórica de mediação entre a tradição
herdada e a situação de dominação. Os Avá-Canoeiro têm demonstrado ter
mecanismos próprios – mesmo em uma situação-limite – para atuar sobre uma
conjuntura desfavorável a partir de estruturas sociais e cosmológicas
ancestrais e dinâmicas.
Em
seu livro clássico sobre os Araweté, onde faz uma revisão minuciosa da
bibliografia sobre os povos de língua tupi-guarani, apontando traços gerais
desses povos, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (Viveiros de Castro,
1986) conclui que a resistência à mudança social imposta pela sociedade
brasileira se deu principalmente pela “vida religiosa”, associada ao xamanismo
e a um elaborado discurso mítico e cosmológico. Desse modo, a “organização
social” é indissociável da cosmologia e da mitologia.
A
história da colonização é incorporada à escatologia e às visões xamânicas,
revelando que a cultura avá-canoeiro não é uma entidade estática e rígida que
se desfaz diante do contato, mas uma mediação constante entre o passado e o
presente, identidade e alteridade, tradição e colonização, de modo que os novos
Avá-Canoeiro continuam se recriando como Ãwa a seu modo e apesar de
todas as restrições.
A
Importância da Nominação
O
processo de nominação dos Avá-Canoeiro do Araguaia indica, no mínimo, uma
profunda consciência histórica e política do grupo, que está sendo transmitida
para as novas gerações. Além de reproduzir padrões culturais antigos, indica
também uma forma de se recriar e perpetuar a identidade ãwa no novo
contexto de opressão e casamentos interétnicos, atualizando o vínculo dos novos
Avá-Canoeiro com seus parentes vivos e com seus antepassados. Pode ser vista
também como uma forma de memória do passado que não deve ser esquecido, de homenagem
e ligação afetiva com os mortos ou de reconhecimento do seu sofrimento e
importância para o grupo.
Referências:
Patrícia
de Mendonça Rodrigues
Disponível
em:
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Av%C3%A1-Canoeiro